segunda-feira, 18 de março de 2013

Eu e o Papa


Quando ele renunciou, eu estava visitando as comunidades, em vista da avaliação dos catecúmenos para os sacramentos. Primeiro, a notícia foi de surpresa e as mais variadas perguntas dos porquês dessa renúncia. Perguntas não eram muito teológicas ou com algum tom de suspeita sobre casos emblemáticos ou pressões internas e externas frente a um mundo cheio de desafios para a fé cristã. Eram pequenas perguntas assim como um filho faz para um pai. E eu tive que assumir isso. Com paciência ir conversando sobre o próprio papa e como um papa pede para sair e dar lugar a outro.
Debaixo das árvores a conversa se alargava ao final das nossas avaliações. Aqueles que assumem ministérios, os catequistas, os animadores de comunidades, anciãos e algumas mulheres eram os que mais curiosos encostavam-se às minhas explicações. A surpresa se transformou em uma notícia eclesial e juntos estávamos falando sobre uma só Igreja, aquela em que nos dá sentido de estarmos todos ali. E foi assim em todas as comunidades por onde passei neste tempo, e que juntos fomos criando também a expectativa pelo próximo papa. A informação e a surpresa transformaram-se em espera e confiança de que um irmão maior na fé nos represente, e o anunciem lá de Roma como o nosso mais novo papa.
Junto àqueles com quem eu me aproximava, durante a formação do conclave, íamos criando possibilidades, assim como em qualquer outro lugar do mundo. Seria um papa africano? Brasileiro, asiático? Íamos também conversando sobre a função de um papa, seu ministério e importância para a Igreja.
No dia 13 de março eu estava em casa, e no outro dia sairia para novas visitas às comunidades. Naquela noite, quando o papa foi escolhido, eu acompanhava pela internet, já ansioso pela fumaça branca. E quando soube do nome e do anúncio, logo enviei mensagens de celular para alguns animadores da paróquia. E a primeira pessoa com quem partilhei foi o Nito, nosso guardião aqui de nossa casa na vila de Moma, ele é cristão. E logo pela manhã do outro dia partilhamos com a Felizarda, uma mulher que trabalha aqui no nosso pátio numa pequena associação de serviço de fotocopiar, ela também é cristã e animadora da catequese em uma das comunidades aqui da vila. Acho que fomos as três primeiras pessoas a saberem da notícia, numa vila de mais de 40 mil habitantes, onde somente dois por cento são cristãos.
Felizarda deu um leve grito, coisa que as mulheres fazem aqui, sinal de júbilo e alegria, e logo disse: quero ver a foto, e como ele é. Fiz uma impressão da foto do mais novo papa e mostrei a eles. E assim segui às comunidades, e o assunto logo vinha entre os animadores. Eu portador dessa notícia e dessa pequena foto, e que mostrava o rosto de um homem que se tornara papa. E que agora ele está muito próximo de cada um de nós. E a medida que a foto ia passando, e o silêncio misturado à expectativa, logo davam espaço a outras perguntas simples: de onde ele é? Como é o nome de seu pai? O que ele disse quando o escolheram?
Foi assim. Eu e o papa. Próximos. Aqui ele não se mostrou da sacada do Vaticano. O novo papa foi passando de mão em mão. Juntos, fomos sentindo uma novidade que nos faz ser uma Igreja servidora do Evangelho. Guiados pelo Espírito do Senhor.
Ele que se inclinou para pedir a bênção do povo, também o recebe aqui. E todos se sentiram abençoados por ele, o papa Francisco. Inclusive eu.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Molhei-me no tempo


Hoje cai muita chuva aqui na comunidade de Oyeleni. Todos esperam em festa. Até que quando chegamos um pouco da chuva havia parado, e assim cantamos, nos saudamos e podíamos trocar novidades – como de costume na cultura. Palavras ao tempo da chuva; a espera pelos sacramentos; a saúde de cada um, e, enfim, continuar a festa, que já começara um dia antes, com a chegada dos catecúmenos e padrinhos, onde se prossegue com o retiro, e ao fim da tarde a chegada da ‘equipa’ – como dizem por aqui – composta pelo padre e animadores.
Neste momento a chuva continua. Eu espero com a mesma paciência que uma criança a minha frente enfrenta ao perceber-se molhada pelos pingos contínuos, e mesmo assim, brinca com a terra molhada a seus pés.
Todos sentem um pouco de frio, e encolhidos se protegem, nos cantos das palhotas e da igreja. Os animadores e eu, em silêncio também nos encolhemos e sem precisar falar, concluir ou argumentar, sofremos a espera, para que enfim tudo continue.
Tudo é feito e preparado na rua, à sombra das grandes árvores, a comida se prepara ali também, um pouco mais retirado, em covas no chão ou sobre algumas pedras, onde se acende o fogo com lenhas. O alpendre onde acolhe o altar para a celebração é feito e enfeitado com palhas, coisa simples, para o dia ou quem sabe dure até alguns dias, para fazer lembrar a comunidade ou alguém que passa que ali aconteceu uma festa, uma celebração da vida e da fé. O pátio ao redor e embaixo das árvores é varrido, e colocam-se esteiras para as pessoas sentarem, às vezes numa celebração, assim acomodados, soma-se mais de mil cristãos.
Quando decido olhar com mais atenção a fim de saber o que fazer, percebo que o som da chuva continua, e o povo encolhido, uns silenciosos também, outros a trocar algumas palavras na língua que os criou, o Macua. Aguardamos a festa sem que possamos fazer algo. Estamos ali, de corpo molhado aguardando um tempo que não é nosso. Ou totalmente feito para nós. Somos frágeis, é isso que concluo. Este mundo, diferente do meu, é inconstante. Tudo se faz a cada momento, mesmo com programas e agendas. O real é o que percebemos acontecendo agora, aos nossos olhos e que confirma ou não aquilo que programamos. O que se faz mais sólido e constante é cada olhar que agora me cerca. Vejo, e percebo ainda todos molhados, em espera confiante, com frio, ou sem saber o que fazer agora – mas é esse olhar sólido e constante que sustenta uma fé inabalável, uma força que eu não tenho, uma certeza que eu não consigo imaginar.
Eles confiam que vai dar certo. Deus hora ou outra lhes estenderá suas mãos. E ali, tudo pode transformar-se. Mesmo com chuva e a incerteza da festa que tanto prepararam, não vejo tristeza, desespero ou vontade de ir embora. Vejo que eles aguardam o tempo, do jeito deles. Quem sabe eu ainda não entenda o sentido das coisas aqui, do ritmo e da espera, do tempo e da confiança.
Senti, com a chuva a me tocar, que tudo está dentro. Tudo agora a minha volta é o tempo proposto e recebido. Estamos em festa e na festa! Mesmo que neste tempo chuvoso vivamos horas até o anoitecer. A chuva que nos estagna está presente na festa, e este é o silêncio que fazemos numa celebração da vida. Aprendi nesta espera que tudo está dentro. Nós chegamos, as comunidades se reuniram, estão ali, trouxeram suas trouxas e lenhas na cabeça horas pelo caminho, as vasilhas com água, seus filhos... já é festa! Mesmo com pouca ou muita previsão dos acontecimentos. Somos apenas um pouco do Povo de Deus que experimenta o caminho da cruz e ressurreição. E se a força do Espírito Santo não nos iluminasse, eu não poderia lhes contar:
O dia seguinte, o domingo da nossa festa. Estávamos todos sem aquela chuva, debaixo das grandes árvores. Danças, cânticos... e todos se confirmavam em festa. A mesma do dia anterior – onde a espera daquela criança era colocar as mãozinhas na terra molhada, experimentar o sabor da vida, molhar-se num tempo e sentir-se dentro...

quarta-feira, 18 de abril de 2012

A dança do 'nós'

Por mais que digam que as coisas evoluam, que a modernidade é inevitável, que o modo de pensar e de se comportar vão se globalizando, e as tecnologias se sobrepõem as antigas formas tradicionais, tudo isso, a meu ver, não rompe com o que está bem lá dentro da gente. E falo isso a partir do lugar onde piso – neste chão africano, ainda pisado e sentido por culturas milenares e com uma sabedoria profunda. Ainda há tribos, reis, anciãos e anciãs, curandeiros, feiticeiros; onde o nó familiar é a força determinante e não pronunciada na formação de uma pessoa, onde a tribo é a base por onde os acontecimentos da vida ganham significado e força para o agir, onde a consciência individual é diluída numa consciência coletiva, corporativa, integrada.

Em um diálogo um ancião dizia-me: tem que nos falar não de um Deus que me salve, mas que nos salve, olhe para os lados, essas crianças, minha família, esses jovens sem esperança... estamos todos juntos, eu tenho fé, e se o Deus que nos fala olhar por nós, eu estarei dentro.

É por isso que numa celebração, onde cantamos, dançamos, ao som dos batuques e ‘ululus’ produzidos pelas mulheres, é ali, juntos, que percebemos a força divina, um Deus que está em nosso meio. É nessa relação entre pessoas, que é muito orgânica, vivencial, verdadeira, essencial e existencial, é desse jeito, que nos tornamos ouvidos e coração para experimentar o amor de um Deus Comunhão. Esse não seria o espaço onde a Trindade se identificaria por ela mesma ser a relação perfeita? Ela não dançaria em meio a esse povo que se vê um, em sintonia, num só coração, mesmo diante de suas fraquezas e descompassos?

Onde está Deus quando o buscamos só? É mais difícil. Os Santos já nos falaram e nos deixaram inúmeros escritos... Lembro da imagem no missal romano, no dia de todos os santos, eles todos juntos, como que contando um para o outro suas dificuldades na busca e como que dizendo-nos: Estamos juntos! É bem melhor, e hoje cantamos nossas lutas e fraquezas, e rimos juntos, e quiçá estivéssemos assim aí, seria bem melhor...


Sem mal entendidos quanto à busca pessoal, a oração pessoal. Não estou indo contra. Mas aqui em África, neste pedacinho de Moçambique, percebo o que já sentia dentro de mim, uma força unitiva, que nos atrai, nos envolve uns aos outros, e que nos une numa mesma busca, mesma fé, mesma espera. Tudo isso sentimos juntos numa celebração da fé e da vida. O nome para isso nós o dizemos sempre de diversas maneiras: fraternidade, comunidade, irmãos na fé, companheiros... E quando o Espírito Santo desceu naquele dia... ah! Que gente unida a rezar à espera confiante! Uma família que nunca mais se separou. Tanto, que até hoje recordamos como se fosse hoje, como presença confiante do passado que não se dissolve. Juntos recebemos a mesma força renovadora, que nos transforma, toca-nos no que está bem lá dentro da gente... e de cada cultura, de cada povo. O mesmo Espírito que me faz ver aqui em África um desejo pela vida, mesmo diante de tanta morte, tanta injustiça; a semente do Verbo Divino sendo pisoteada, dilacerada. E mesmo assim, pelas brechas, fendas, e cantos que sobram, o povo que tem fé se dobra com a semente nas mãos, e as plantam com o suor que cai de seus corpos sofridos. A colheita... é esperança, confiança, em meio a dor... e Aquele que nos fez humanos, também Ele nos ensinou. Da morte, mostrou-nos a vida. E com a vida, libertação.

... e nas celebrações vejo sorrisos, vejo os pés traçarem compassos e a poeira levantar do chão – como incenso de oblação, e vejo as cores se entrelaçarem, as mãos se unirem, tornarem-se força e perseverança. A Trindade Santa dança com a gente, nos seduz, nos enche de carinho. Mesmo nós, aos tropeços, Ela nos ensina, nos acalenta. E o povo sente-se mais forte, orante, crente. Somos uma parte desta Comunhão Divina que nos torna livres, nos faz dizer de nós mesmos, no cotidiano da vida, uma busca pelo ‘nós’. Pela dança do ‘nós’.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Estamos Juntos


A cada dia que passa na missão descobrimos o sentido de estarmos aqui, de sermos presença junto a esse povo moçambicano. Uma presença missionária, de discipulado. Quando a gente celebra nas pequenas comunidades cristãs daqui de Moma, vivenciamos tudo o que este povo tem. Por um lado percebemos que é muito pouco, a comida, as estruturas. Mas por outro redescobrimos juntos os seus valores culturais e religiosos que são muitos.
Mas perceber esta multiplicidade é um pouco difícil num primeiro momento. Um trabalho árduo de garimpar em meio a um terreno que já foi explorado e ferido nas suas camadas mais profundas. Garimpar com o carinho do diálogo e anunciar uma grande redescoberta, de pequenas luzes de esperança, que brilham ainda muito forte no coração de cada um.
Aqui no norte de Moçambique, junto ao povo Macua, temos a certeza de que nossa missão tem sentido. Não porque somos necessários aqui – eles poderiam viver sem nossa presença, dar um jeito, fazer o que já fazem; celebrar juntos, vivenciar uma Igreja ministerial, se esforçar para isso. Mas estamos juntos porque assim descobrimos juntos que Deus está aqui, muito próximo. É assim que nos fazemos ver e sentir que somos irmãos, e que podemos compartir uns com os outros a fé que temos. Atravessamos o continente pela ação missionária de uma Igreja Irmã para convivermos unidos na mesma esperança: que o Reino de Deus se faça.
Viver a fé com estas comunidades que celebram a missa embaixo de uma árvore, que buscam um pedaço de pão repartido, é ver um Jesus descido da cruz. Um Jesus que se aproxima muito de cada expressão que percebemos. Um sorriso, uma palavra macua, um movimento de dança, um aperto de mão, um olhar silencioso, e também de suas dores, de suas preocupações.
Este pão não alimenta, é pequeno demais. Este pão, diante da pouca comida que eles têm, não sacia. Este pão não é o alimento do dia a dia, tampouco parecido com caracata e chima. Este pão substanciado é o alimento da fé, uma fé que conseguimos enxergar, vivenciada na vida de cada um, em cada momento.
Quando as mulheres levantam bem cedinho para irem à machamba, com a enxada na cabeça e o filho nas suas costas, nós as vimos vivendo sua fé. E quando elas voltam à tarde, com os produtos ou um feixe de lenhas na cabeça e o filho nas costas, enrolado numa capulana, nós as vimos novamente vivendo sua fé. Quando seus maridos as traem ou as exploram, elas sofrem por não terem direito de reclamar. É neste silêncio que muitas dessas mulheres vivem sua fé.

Quando os homens daqui vivem desde quando nasceram num ambiente precário e cheio de contradições, sejam elas sociais, políticas e culturais, vimos neles uma resistência pela qual aprenderam a se proteger e sobreviver assim, sob as mesmas contradições. Diante de suas fraquezas há uma luta por vida. Há neles um Jesus descido da cruz.
Mas debaixo das mesmas árvores, na fila da comunhão é que também se vê claramente uma busca por um Jesus ressuscitado, vivo. E como missionários, sentimos essa certeza e vivemos esta presença, de um Jesus muito próximo. Ele realmente está aqui, no meio de nós. Ajudando-nos a ver e a sentir um caminho melhor. Valorizando o que tem de melhor e mais bonito na vida de cada um, deste povo Macua. Por isso, ‘Estamos juntos’, expressão muito usada aqui para dizer que nos entendemos e queremos caminhar juntos.
Fazemo-nos lembrar o que aprendemos por ser cristão: Jesus, com aqueles a quem quis que entendessem o que mais deveria ser feito hoje, repartir o pão. Somos a Igreja do pão repartido; onde os olhos se abrem para a liberdade, que nos confere dignidade e nos faz entender que somos todos irmãos e irmãs, e filhos e filhas do Deus da vida.
É nesse sentido que o pedido continua a quem se sentir convocado e chamado por esse Deus da unidade. Sentir-se vocacionado a vir para a África, viver e enxergar junto com esse povo um Deus a quem imperamos nossa fé. Este Deus que sempre o encontramos mais evidente nos pequenos e pobres. E estar aqui é se colocar como instrumento de seu plano de amor.

sábado, 2 de julho de 2011

Ver Andando

Viver é sempre um desafio. Podemos gostar desse desafio e viver intensamente ou simplesmente sobreviver, resistindo. Mas a vida sempre nos rasgará por dentro pedindo uma posição, que sempre será a favor do desafio. Podemos sair machucados e conscientes, e também derrotados, ou simplesmente machucados. Prefiro viver sangrando, porque o que vejo me fere a todo instante. Prefiro ver andando. Um rosto a mais que noto pode ser a abertura para uma parte de mim que precisa ser libertada. Uma variação de cor que me vem ao olhar pode me borrar a consciência e me envolver inteiro numa nova realidade. Uma palavra ou gesto ainda desconhecido pode ser um convite a pensar sobre a multiplicidade da vida. Porque, contudo, o desafio é viver.

















Missa no lar dos vocacionados, em Moma.

















Rostos de mulheres da comunidade de Najaca
















Vai um ratinho aí!? Bem torradinho... Visita a comunidade Mualamuala.














Algumas crianças no primeiro sol da manhã, na comunidade Mpacane.
















 Minha comida ficando pronta. Carne de cabrito e arroz. Comunidade Mpacane.
















 Celebração na comunidade de Micane. Padre Maurício e eu movidos pelos cânticos e danças.
















 Apresentação em danças na visita a comunidade de Maniquela B.

















Momentos roubados e fotografados. Comunidade de Najaca.